Em novembro de 2016 passei pela experiência de estar em imersão em um retiro de meditação, com o intuito de aprender a técnica meditativa de Vipassana. Quem empreende um caminho de autoconhecimento e cura interior sabe que em algumas ocasiões faz-se necessário passar por períodos de reclusão social, seja para desenvolver determinada técnica, seja porque há a necessidade de introspecção e afastamento de informações externas que, à primeira vista são banais, mas que em um processo de autoconhecimento se tornam nocivas.
Um dos meus desafios é explicar aos amigos e familiares o porquê desses períodos, justificando minha ausência e dedicação a essas atividades e tentando tirar aquela impressão de que isolar-se em meditação é uma atitude egoísta, de fuga e que visa apenas benefício próprio. Para tanto, cito aqui o próprio S. N. Goenka, disseminador da prática de meditação Vipassana no Ocidente, quando confrontado se não seria egoísta se esquecer do mundo e simplesmente ficar sentado meditando o dia todo: “Poderia ser, se isso fosse um fim em si, mas é um meio para uma finalidade que não é de forma alguma egoísta: uma mente saudável. Quando o seu corpo está doente, você vai a um hospital para recuperar a saúde, não para permanecer lá o resto da sua vida, mas simplesmente para recuperar sua saúde e, depois, usá-la na vida cotidiana. Da mesma forma, você vem a um curso de meditação para adquirir saúde mental que depois irá utilizar na sua vida corrente, para o seu bem e para o bem dos outros”.
Mas vamos ao curso de Vipassana em si. Como explicado aqui, a meditação Vipassana é ensinada em centros credenciados, por professores experientes na técnica e autorizados a transmiti-la àqueles interessados em aprendê-la, em cursos de 10 dias. Incentivada por uma amiga praticante de Vipassana há anos, me inscrevi para um curso, ciente de todas as condições impostas aos que desejam aprender a técnica. Por que o fiz? Primeiro, porque senti que agora era o meu momento para isso, 6 anos após tomar conhecimento da existência dessa meditação. Segundo, porque queria aprofundar minha prática meditativa (que consistia em silenciar a mente colocando o foco na respiração) que já vinha mantendo há meses.
Neste relato não descrevo a técnica, ela deve ser somente transmitida por um professor credenciado para tal. Também não cito os princípios nos quais ela está ancorada pois acredito que estes devem vir acompanhados pela prática. Venho apenas descrever minha experiência e como ela impactou meu cotidiano.
Éramos aproximadamente 40 mulheres e 40 homens em imersão para a prática de Vipassana, no Centro de Meditação Dhamma Sarana, em Santana do Parnaíba. Como pude constatar depois de finalizar o período de Nobre Silêncio, as pessoas que ali se encontravam tinham os mais variados perfis: desde jovens de 18 anos (idade mínima para iniciar-se na prática) até um senhorzinho de uns 80 e poucos anos, e de diversas profissões – professor de inglês, executivo, estudante, aposentado, professor de yoga, consultor financeiro, atriz, fotógrafo, doula, farmacêutico, etc. O que tínhamos em comum? A busca por uma técnica que auxiliasse em nosso processo de autoconhecimento. Muitas das pessoas com quem conversei tinham aquela sensação de ‘existe algo mais’ para se desbravar.
Cheguei ao centro Dhamma Sarana em uma quarta-feira à tarde, onde fiz o credenciamento e deixei todos os objetos que poderiam me distrair em posse da equipe do centro. Durante o retiro, você não tem acesso a celular, dispositivos de música, livros, bloquinhos de anotação, caneta, comida (sim, fui convidada a deixar meio pacote de bolacha em consignação – na hora ri e pensei ‘ah, que besteira’) e remédios. Remédios? Exatamente! Qualquer medicamento que não seja de uso contínuo é guardado – a justificativa é que, ao longo do curso, você pode sentir dores e querer fazer uso deles, não permitindo que a técnica aja por completo. O que não significa que a equipe te deixará passar por algum problema de saúde, o amparo existe quando realmente necessário.
Quando todos os alunos estavam presentes, jantamos e logo em seguida tivemos uma palestra para explicar como seria o cronograma durante o curso – palestra dada à luz de velas, porque chovia muito e ficamos sem energia elétrica. Após a explicação entramos em Nobre Silêncio e nos dirigimos aos nossos quartos. O lado feminino (mulheres e homens ficam separados o curso todo) possui 3 alojamentos, com quartos compartilhados. Fiquei em um quarto com mais 3 mulheres, que depois de 10 dias vim a saber seus nomes e de onde eram – duas cariocas e uma paulistana.
O Nobre Silêncio consiste em não falar absolutamente nada com as outras alunas, mesmo em situações onde vemos necessidade, como quando uma aranha entra no quarto e temos que retirá-la (durante o curso, seguimos a regra de não matar nenhum animal, nem mesmo uma formiguinha). Não é dito sequer um ‘obrigada’ ou ‘desculpa’. A ausência de comunicação não é apenas verbal, também evitamos a comunicação visual e gestual com as demais pessoas. Inicialmente, isso me pareceu exagero, mas ao longo do curso vi o quanto é necessário e eficiente para que se desenvolva a técnica corretamente. Nos primeiros dias tive grande dificuldade em evitar a comunicação visual, tinha vontade de olhar para as pessoas, tentar identificar o que elas estavam sentindo. Mas percebi que ao longo do curso a necessidade em me comunicar foi diminuindo, e fui entrando cada vez mais no processo de auto-observação.
A rotina no centro é bem puxada: as atividades se iniciam as 4:30, e ao longo do dia temos 3 meditações em grupo de 1 hora, que ocorrem na sala de meditação e na presença do professor, e 5 meditações de 1 hora e meia, individual, que podem ser feitas tanto na sala como no quarto. Entre uma meditação e outra temos um intervalo de uns 10 minutos. Ao final do dia temos uma palestra de aproximadamente 1 hora e meia, proferidas por S. N. Goenka e transmitidas a nós por gravação. O café da manhã é servido as 6:00, o almoço as 11:00 e, para alunos novos, há um café da tarde as 17:00, onde são servidas frutas (alunos antigos se abstém de comer a tarde, podendo tomar limonada) – o cardápio adotado pelo centro é vegetariano, simples, mas muito nutritivo. Confesso que meu maior receio ao ir fazer o curso de Vipassana era sentir fome, pois tenho o hábito de fazer várias refeições ao dia. Então, claro, minha lógica foi ‘vou comer muito no almoço para não sentir fome a noite’. Não adiantou muito… Além de ter me sentido mal a tarde toda pelo almoço em exagero, ainda tive fome a noite (‘ahhhhhh pq fui entregar aquele pacotinho de bolacha na recepção?!’). Mas, acreditem, nos demais dias não senti fome, pelo contrário, conforme me aprofundava na técnica, comia menos.
Difícil descrever o que acontece enquanto estamos imersos em um retiro de meditação. Entramos em um nível muito profundo de introspecção e autoconhecimento, acessamos memórias e revivemos experiências, vemos aflorar emoções e sentimentos até então adormecidos. A experiência é única, cada pessoa chega ao curso com um histórico de vida, com diferentes propósitos, o que torna impossível classificar o que se vivencia ali. Se para alguns a experiência é mágica, para outros pode ser aterrorizante – alguns alunos não chegam a concluir o curso, abandonando-o pela metade. A minha vivência foi maravilhosa, porém muito difícil. Inúmeras vezes me perguntei o que fazia ali, qual o propósito daquilo tudo, o porquê estava me submetendo a uma técnica tão intensa. Senti algumas dores e incômodos físicos, devido a posição em Adhitthanna (firme determinação – no caso, em ficar imóvel durante 1 hora), porém meu maior inimigo foi minha própria mente, tagarelando o tempo todo e me dizendo ‘você não vai conseguir’. Quando a técnica começa a se fortalecer, vemos que até mesmo algumas dores físicas são produtos da nossa mente, e elas simplesmente deixam de estar presentes. Ao longo do curso acessei muitas memórias de infância, lugares e situações que já me escapavam da consciência, ‘andei’ por ruas onde estive um dia, revivi conversas e discussões, chorei ao acessar emoções guardadas, tive crise de riso que me obrigou a sair correndo de uma sessão de meditação, entrei em estados alterados de consciência, passei meditações inteiras pensando em comida, tive percepções totalmente novas sobre meu corpo físico, senti dores pelo corpo… Não pretendo com esse relato descrever como é a prática do Vipassana, nem apontar seus possíveis pontos positivos e negativos, simplesmente por que ela é única para cada praticante – tentar descrevê-la é limitá-la.
O que pretendo é compartilhar o que a técnica me agregou, tanto durante o curso, como depois, ao voltar ao mundo ‘real’. Durante os 10 dias desenvolvi em mim a prática da compaixão. Falar de compaixão é complicado, esse é um sentimento tão confuso, tão distorcido, tão conceitualmente em voga, mas vivencialmente em falta. Foi durante o curso que pude, de fato, sentir compaixão por seres e pessoas com os quais não tinha absolutamente nenhum vínculo. Foi então que o preceito de não matar nenhum ser vivo durante o curso fez total sentido para mim – foi lindo sentir profundo respeito e gratidão pela presença de todos os seres presentes naquele centro de meditação. E o que falar das pessoas com quem convivi durante 10 dias sem trocar uma única palavra? Pude entender, com o coração e não com a mente, que todos ali estavam em seus processos, com suas dores e alegrias, e me compadeci de seus momentos, sem a necessidade de fazer qualquer intervenção. Foi ali, durante um período de silêncio total, que vivenciei como as relações se formam em um nível muito mais sutil do que imaginamos – o carinho que foi nascendo pelas meninas que dividiam quarto comigo, a falta que eu sentia quando a garota de trás não estava na sala de meditação, o apoio quando via uma delas não suportando a sessão meditativa. Tudo sem dizer uma única palavra, sem nem trocar olhares.
O pós-retiro
Não, não esperem que o retiro tenha me causado mudanças profundas. Sigo sendo uma pessoa normal, com minhas limitações, aspectos egóicos, alegrias, medos e desafios. Meditação não faz milagres, não encurta caminhos de aprendizagem. Mas o Vipassana tem me ajudado a trilhar esses caminhos de maneira mais leve e, algumas vezes, mais lúcida. Todos nós, guardadas as devidas proporções, sofremos – seja por apego, seja por aversão (às pessoas, situações, coisas, emoções). Não temos uma percepção consciente da natureza da realidade e, por isso, acreditamos que temos problemas e que não conseguimos resolvê-los. A única maneira de experimentar a verdade diretamente é observando-se, olhando para dentro de si mesmo. Somos educados a olhar sempre para fora, nosso interesse está em ver as coisas que acontecem fora de nós, em aquilo que os outros estão fazendo. Raramente procuramos analisar a nós mesmos, nossa própria estrutura física e mental, nossas ações, nossas emoções – e, assim, permanecemos desconhecidos a nós mesmos e, consequentemente, à mercê de forças internas das quais nem consciência temos. A arte da meditação nos proporciona a capacidade da observação sem identificação do que se passa em nós mesmos: nossos pensamentos, nosso corpo, nossos sentidos. A contemplação focada nos permite silenciar nossa mente e, assim, enxergar a realidade como ela é, e não como nossa mente tagarela acredita ser. A prática do Vipassana te auxilia a manter a equanimidade – tanto ao observar as sensações no próprio corpo físico quanto ao se defrontar com desafios em seu dia-a-dia. E é essa equanimidade que vem me auxiliando de maneira prática em minha vida. Não que não tenha tido mais problemas, mas permaneço cada vez menos tempo nesse processo de sofrimento. E consigo olhar aspectos de minha vida com maior lucidez e centramento.
Manter-se na prática diária não tem sido fácil, é preciso persistência, dedicação e amor para tanto. Sim, amor, porque fazer da prática apenas uma atividade corriqueira e obrigatória a torna maçante, e você perde seus benefícios.
Após 3 meses que fiz o curso de meditação pela primeira vez, decidi vivenciar o Vipassana de outra maneira: servindo. Participei de um curso como servidora, auxiliando em tarefas na cozinha, podendo colaborar no aprendizado de outras 80 pessoas que decidiram aprender a técnica. Servir te coloca frente a frente com outros desafios, te ajuda a se fortalecer na técnica, além de te proporcionar a convivência com outras pessoas que estão ali com o mesmo propósito que o seu: trabalhar pelo Dhamma. Uma experiência que também me ensinou muito sobre mim mesma, me mostrando outras facetas de quem sou. Participar de um retiro como servidor é uma das maneiras de retribuir o aprendizado adquirido, por isso só alunos antigos tem a permissão para trabalhar em um curso.
Se você sentir o chamado e estiver preparado para a rotina intensa do curso, procure o centro de Vipassana mais próximo e se inscreva!
Eü queto me ajude