O Bem Viver é uma filosofia em construção e universal, que parte da cosmologia e do modo de vida ameríndio e já tem ampla expressão no Equador e Bolívia. Podemos encontrar as origens de seu conceito em diferentes cosmologias, principalmente:
- no teko porã ou nhandereko, guarani. De acordo com Tadeu Breda, teko se refere à vida e à existência em comunidade; porã pode ser traduzido como belo, bonito, bom; já nhandereko significa “nosso modo de vida”
- no ubuntu africano: “eu sou porque nós somos”.
- no sumak kawsay, kíchwa. Também de acordo com Tadeu Breda, sumak se traduz como belo, primoroso, e kawsay como vida.
Reciprocidade e solidariedade
A ideia fundamental do Bem Viver é promover um estilo de vida inspirado na reciprocidade e na solidariedade, fundado nos direitos de todos os seres vivos. A proposta é de uma sociedade plurinacional e intercultural, respeitosa e comunitária, que respeita a natureza e as diferentes formas de viver dos diferentes povos. O projeto é libertador por essência, tolerante por essência, e portanto não carrega em si dogmas ou preconceitos, ou mesmo quaisquer regras universais que vão além do pressuposto básico do respeito à vida.
Ao contrário de muitas das filosofias às quais temos o contato, o Bem Viver se destaca exatamente por sua não pretensão de universalidade. Ou seja, a ideia é criar as bases para a vida comunitária independente e livre, em um mundo no qual possam conviver grupos de diferentes ideologias e modos de vida. Não se cria o distanciamento entre os diferentes, mas possibilita-se que o estilo de vida de um não destrua o de outro. É por isso, inclusive, que Alberto Acosta, um dos grandes defensores da filosofia, defende que o nome seja traduzido como “bem conviver” ou “bens conviveres”.
Em um contexto de crescimento do fascismo e de negação dos direitos das comunidades originárias para que se possa aumentar desenfreadamente o consumo, a proposta é no mínimo inovadora. E ao mesmo tempo, antiga e decorrente das essências do que é ser humano. Pode parecer abstrata, mas na verdade ela já foi incorporada às constituições nacionais equatoriana e boliviana.
Desenvolvimento vs bem conviver
Desde meados do séculos 20, fala-se em desenvolvimento e progresso como se estas palavras significassem tudo que há de bom, e como se houvesse uma única receita de vida para todas as pessoas, em todos os locais. Países, povos e etnias são classificados como “subdesenvolvidos”, como se eles devessem se ocidentalizar ao modelo da Europa central ou dos EUA para que então fossem considerados dignos. Como selvagens em frente à civilização colonizadora. Conhecimentos ancestrais são ao mesmo tempo negados ao serem chamados de curandeirismo e incorporados pela grandes indústria sem qualquer remuneração justa aos povos que os descobriram. Como diz Wolfgang Sachs, o desenvolvimento tornou-se obsoleto. E para tentar corrigir uma rota que já demonstrava seu insucesso, começamos a dar sobrenomes ao desenvolvimento, como aponta Aníbal Quijuano.
Desenvolvimento econômico, social, local, global, rural, sustentável, humano, endógeno, com igualdade de gênero, transformador, cocriado. Questionam-se pontos de incômodo, mas nunca a forma de atuação em si. Conta-se uma história única sobre como as sociedades devem se portar e onde queremos chegar, e podemos apenas mudar um pouquinho aqui ou acolá para um pretenso respeito às individualidades. Mas será que existe mesmo um modelo global e unificador?
A ideia de que toda sociedade deve ser desenvolvida desconhece violentamente, e aqui falamos não apenas de violência simbólica, os sonhos e projetos, as lutas e conquistas de inúmeros povos – sem falar do modelo que se aplica aos animais e à natureza em geral. Só no Brasil, temos mais de 250 etnias e centenas de milhares de pessoas que já se encontram organizadas por modos de vida que negam o desenvolvimentismo, a acumulação, o expansionismo. Enquanto pensarmos em desenvolvimento, estaremos negando a estes povos seu próprio direito de autodeterminação. E será que é realmente necessário que criemos um modelo global?
Uma das coisas mais interessantes sobre os próprios povos indígenas em geral é que eles não tentam impor seu estilo de vida, sua linguagem, sua cosmologia aos outros. Eles simplesmente propõe uma bem convivência, na qual eles podem manter seus direitos e sua visão englobadora da natureza. E por que nós não indígenas não podemos também optar por modelos de vida em que escolhemos nossos próprios tempos e ritmos?
Utopia em construção
A construção do Bem Viver é uma construção utópica, mas que cria uma nova narrativa, ou melhor, a possibilidade de questionarmos a narrativa única que nos é proposta. Propõe uma transformação civilizatória baseada na não exclusão e na não dogmatização.
Como diz Boaventura de Souza Santos, o viver melhor é uma ideia de competição, na qual um ganha se os outros perdem (melhor pressupõe por si só que existe um pior); já o bem viver prevê que ninguém pode ganhar se o outro não ganha também. Esta lógica da colaboração já emerge de diversos grupos que se criam, como as ecovilas e as escolas transformadoras. O próximo passo, de acordo com diversos defensores do bem conviver, é construir caminhos de reencontro nos quais possamos, como eu costumo dizer, nos reenvolvermos com a essência.
Cultura de cooperação
E para terminar, fica a dica de que uma lógica já presente em nosso país e acessível a todos é a dinâmica das manifestações de cultura popular brasileira. Não há cavalo marinho, caboclinho ou frevo sem que todos colaborem para a construção de uma imersão coletiva. Não há maracatu ou coco sem a ideia de que as forças que nos regem são também os desdobramentos da natureza.