Elas aprenderam a partejar com as sogras, mães, tias e primas. Herdaram o conhecimento das parteiras antigas, consideradas dotadas de extensa sabedoria sobre as ervas, o parto e a natureza. Conhecimento que foi se perdendo com o tempo e com a institucionalização do parto, à medida que a expansão dos serviços médicos-hospitalares alcançaram as aldeias. Na década de 80, elas foram intimidadas por um sistema hegemônico que exigia autorização para que pudessem exercer suas práticas, sob a pena de serem presas, em caso de intercorrência, segundo a pesquisadora Vilma Benedito de Oliveira. Em sua monografia “Saberes e práticas das parteiras Tupinikim”, apresentada na Universidade de Brasília, ela resgatou, por meio de entrevistas com parteiras remanescentes, algumas das técnicas empregadas para acelerar o trabalho de parto, garantir o bem-estar da parturiente, facilitar a dequitação e nos primeiros cuidados com o bebê.
Antes do parto
As parteiras Tupinikim costumam orientar a gestante a se preparar fisicamente antes do parto. No quinto mês de gestação, recomendam a ingestão de um purgante para evitar que a criança tenha problemas de pele. Dentre outras orientações, elas aconselham a não dormir muito durante o dia e fazer os trabalhos domésticos normalmente. No acompanhamento da gestação, as parteiras tocam a barriga da mulher para verificar se a criança está na posição cefálica (mais favorável para o nascimento). Caso contrário, fazem massagem com óleo de amêndoa para direcionar a criança
Parto
O parto praticado na aldeia é totalmente natural, sem nenhum tipo de intervenção medicamentosa. São respeitados a fisiologia e o tempo da mulher. Ela tem liberdade de posição, para andar, comer, beber e estar na companhia de quem desejar. Contam com o apoio emocional das pessoas que a rodeiam, principalmente da parteira, que não se ausenta em momento algum, não importando a duração do processo de parturição.
Os métodos usados pelas parteiras com o objetivo de reduzir o trabalho de parto incluem:
– banhos quentes: da cintura para baixo, dentro de uma bacia de madeira;
– mentrasto (Erva de São João): usado para “aumentar a dor”, fortalecendo as contrações uterinas”, em forma de chá. Um gole oferecido à mulher e o restante misturado à água no banho quente;
– massagem com óleo de amêndoas: chamado de “esfriguição” pelas parteiras, consiste em movimentos de puxo do bebê no sentido abdome-pelve. Há relatos de uso do óleo aquecido ou de parteiras que passavam o óleo nas mãos e aqueciam-nas no calor de brasas antes de realizar a massagem.
– rezas: as parteiras entrevistadas afirmaram que apenas as “parteiras antigas” tinham o conhecimento das rezas. “Iracema informou que quando o parto era demorado, a ‘parteira antiga’ percebia que o bebê estava mal posicionado para nascer, então, ela ia para fora da casa rezar e logo ocorria o nascimento.”
“[…] dava um banho de água bem quente na gamela (bacia de madeira) da cintura para baixo e depois sacudia a barriga, dava a esfriguição (massagem) com óleo de amêndoa pra aumentar a dor e acelerar o parto […]” Parteira Araci
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A dequitação da placenta é natural, ou seja, a parteira aguarda a placenta se desprender livremente, sem a tração do cordão umbilical e sem nenhum tipo de medicamento. Depois, a puérpera toma banho na gamela com água morna pura, com sal ou pedra hume. Em seguida, a parteira faz a massagem na barriga e coloca uma cinta de tecido para apertá-la, favorecendo a involução uterina e dando mais firmeza ao abdome. A mulher fica restrita ao leito por um período que varia de três a cinco dias. A placenta, segundo o costume, é enterrada pelo marido em um dos cantos da casa, “sem ninguém ver”.
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Uma das parteiras entrevistadas pela pesquisadora afirmou que quando a placenta demorava para se desprender fazia uma “simpatia”. “[…] Só as vezes quando fica o resto, a placenta fica pra trás agarrado aí tem que fazer simpatia pra poder tirar. A vez se dá três caroços de feijão pra pessoa engolir e soprar na garrafa pra poder descer a placenta”, afirmou Anauá.
Pós-parto
A parteira mede três dedos acima da barriga da criança e corta o cordão umbilical com uma tesoura. Limpa com um algodão e envolve o coto com um tecido leve. As mulheres, em geral, tomam um banho após o parto e são envoltas, na barriga pela cinta. Três dias após o parto, é costume tomar banho e beber o chá feito com duas ervas medicinais, conhecidas como “quitoco” e “bete” para ajudar no processo de limpeza e involução uterina.
“Tem os dois remédio: o quitoco e o bete. Depois de três dias que ganha, dava o banho e dava o purgante. Dá o banho e o chá pra beber e dá esfriguição depois também na barriga de cima pra baixo e de baixo pra cima. Tem uma cinta para apertar o útero da mulher”, explica Anauá.
Segundo a parteira Iracema, fonte da pesquisa, era costume entre os antigos da tribo, a reclusão da mãe e do bebê no quarto, onde não poderia entrar corrente de ar, no sétimo dia após o nascimento. Na noite, a parteira fazia uma defumação com incenso em todos os cantos da casa, mas roupas do bebê e fazia outra massagem na barriga da mulher. Até completar esse período, o bebê só podia ser visto pelas pessoas de sua casa.
Resguardo
Na cultura Tupinikim, o período de trinta a quarenta dias depois do parto é permeado de simbologias e restrições alimentares que visam garantir a saúde da mulher e da criança. Por exemplo:
“[…] lagarto ela não podia comer porque a criança custava a andar” – Iracema
“A raia quando pega ela e bota dentro do bote, ela bota as tripa pra fora, então se a mulher comer ela fica assim” – Ceci
“Caranguejo era só depois de 40 dias, os que tinha com puã igual, pro peito não ficar errado. Ameixa só de um mês e pouco, porque a ameixa (marisco do mangue, tem menstruação e logo vinha a menstruação. Não podia comer. A ostra podia comer, e a ameixa não” – Iracema
“Só não pode comer batata doce porque ela poca (racha), aí faz mal. Nã pode comer ovo porque deixa a mulher catingosa” – Araci
Entre os males de se quebrar o resguardo também se incluem o inchaço da barriga, a diarreia e até a morte. Para curá-los, as receitas são diversas: garrafadas feitas com cachaça e arruda, chá de picumã (teia de aranha mais a fumaça da queima de madeiras que se forma em cima do fogão de lenha) e o purgante feito com óleo de rícino e chá de rosa branca.
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No pós-parto imediato, até os dias atuais, a família toma a “sopa branca” que é um pirão feito de caldo de galinha e farinha de mandioca, temperado com bastante pimenta do reino, alho e sal. À puérpera é permitido ingerir apenas a coxa e o peito da galinha. As demais partes são para consumo dos familiares na comemoração pelo nascimento da criança.
A bruxa
Para evitar o risco de morte do recém-nascido nos primeiros dias, é costume, nas aldeias Tupinikim, deixar a casa sempre iluminada pela lamparina e guardar uma tesoura embaixo do travesseiro da criança. Ela serve para que a mãe corte a finíssima língua da bruxa, caso ela venha sugar o sangue do bebê. A parteira Iracema relata que perdeu um dos irmãos por conta da bruxa: “Mamãe suntou (ouviu) um negócio abrindo a palha em cima. Mamãe não ligou não. Parece que tem alguma coisa abrindo. Ela só viu quando o nenê deu um gemido. Deu aquele gemido, aí ela viu um fio, uma linha. Parece que botaram aquela linha em cima da criança e chupou o sangue dele todinho pela aquela linha. Foi a bruxa que chupou o sangue dele todinho. Daí ele morreu, o segundo filho dela”.
Por: Adriana Franzin/EBC